Uma releitura do princípio da preservação da empresa

Os efeitos da recuperação judicial de empresa face o interesse público do processo licitatório

 

O Superior Tribunal de Justiça decidiu, ainda em junho passado, questão absolutamente importante, atinente aos efeitos da admissão de pedido de recuperação judicial frente o interesse público que conduz qualquer processo licitatório.

A questão versava sobre o conflito aparente de normas entre o art. 31 da Lei n.º 8.666, de 1993, e o art. 52, inciso I, da Lei n.º 11.101, de 2005, decorrente do regime jurídico estabelecido para a recuperação judicial das empresas e sua oponibilidade ao interesse público que conduz qualquer procedimento licitatório.

Ao apreciar o tema, sem sombra de dúvidas, o Superior Tribunal de Justiça foi muito além de conciliar prescrições normativas aparentemente conflitantes, dedicando-se na verdade a promover uma releitura do dogma da preservação da empresa, corolário do fundamento da República quanto ao trabalho e à livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, da Constituição Federal).
Assim está ementado o importante precedente:

ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PARTICIPAÇÃO. POSSIBILIDADE. CERTIDÃO DE FALÊNCIA OU CONCORDATA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. DESCABIMENTO. APTIDÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA. COMPROVAÇÃO. OUTROS MEIOS. NECESSIDADE.
1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo n. 2).
2. Conquanto a Lei n. 11.101/2005 tenha substituído a figura da concordata pelos institutos da recuperação judicial e extrajudicial, o art. 31 da Lei n. 8.666/1993 não teve o texto alterado para se amoldar à nova sistemática, tampouco foi derrogado.
3. À luz do princípio da legalidade, “é vedado à Administração levar a termo interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não o dispuser de forma expressa” (AgRg no RMS 44099/ES, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/03/2016, DJe 10/03/2016).
4. Inexistindo autorização legislativa, incabível a automática inabilitação de empresas submetidas à Lei n. 11.101/2005 unicamente pela não apresentação de certidão negativa de recuperação judicial, principalmente considerando o disposto no art. 52, I, daquele normativo, que prevê a possibilidade de contratação com o poder público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação.
5. O escopo primordial da Lei n. 11.101/2005, nos termos do art. 47, é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
6. A interpretação sistemática dos dispositivos das Leis n. 8.666/1993 e n. 11.101/2005 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada dos princípios nelas contidos, pois a preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.
7. A exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica.
8. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial.
(STJ, AREsp 309.867/ES, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 08/08/2018)

O recurso especial, manejado com fundamento em afirmação de contrariedade à legislação federal e ao entendimento de outro tribunal, atacou acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, fundado na seguinte premissa: “os documentos exigidos pelo art. 31 da lei nº 8.666/93, bem como pelo instrumento convocatório, devem ser devidamente atendidos pelos licitantes, haja vista que a Administração Pública, ao realizar o certame, deve estabelecer exigências que garantam que o vencedor terá condições econômicas para suportar os gastos – às vezes, bem elevados – do objeto do futuro contrato administrativo (…). O inciso II do art. 31 da Lei de Licitações deve ser interpretado de forma a contemplar também os casos de recuperação judicial, haja vista que tal instituto, assim como a antiga concordata, tem por fim conceder benefícios àquelas empresas que, embora não estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econômicas, colocando em risco o empreendimento empresarial”.
O mencionado acórdão, objeto do recurso especial cujo julgamento se examina, foi relatado pelo Desembargador José Paulo Calmon Nogueira da Gama, perante a egrégia 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Espírito Santo na apelação n.º 0004200-96.2011.8.08.0024.

A exegese encampada no julgamento da Corte Estadual foi no sentido de que, em sendo exigida certidão negativa de falência ou concordata para fins de habilitação econômico-financeira em licitação, na forma do art. 31, inciso I, da Lei n.º 8.666, de 1993, haver-se-ia de compreender que também a pendência de procedimento de recuperação judicial serviria de óbice à admissão do empresário em licitação pública.

Tal conclusão estava, assim, promovendo a equiparação entre os procedimentos de concordata e de recuperação judicial, a despeito de todas as inovações quanto ao regime jurídico pré-falimentar instituído pela Lei n.º 11.101, de 2005, de forma a exigir certidão negativa de recuperação judicial para fins de participação de certame pública.

A consequência do precedente cunhado na Corte capixaba foi, destarte, no sentido de que todo e qualquer empresário submetido a regime recuperacional estaria inadmitido, por inaptidão econômico-financeira, em procedimentos licitatórios.

É exatamente neste pormenor que reside o cerne da quaestio, eis que, dentre as inúmeras alterações que a Lei n.º 11.101, de 2005, impôs ao regime de recuperação e de falência da empresa, sepultando a figura da concordata, está aquele segundo o qual, deferido o processamento da recuperação judicial, o juiz determinará “a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios” (art. 52, inciso II).

Consoante afirmado, o escopo do presente estudo, em leitura do precedente do Superior Tribunal de Justiça no Agravo no Recurso Especial n.º 309.867-ES, relatado pelo Ministro Gurgel de Faria perante a 1ª Turma, reside pontualmente em aferir a solução aplicável ao conflito aparente de normas entre o art. 31 da Lei n.º 8.666, de 1993, e o art. 52, inciso I, da Lei n.º 11.101, de 2005.

A relevância do tema assume ainda maior destaque quando se constata que, nos expressos termos do voto condutor do precedente perante o Superior Tribunal de Justiça, a questão é divergente na doutrina, tendo em vista que, de um lado, Marçal Justen Filho sustenta que os efeitos da concordata sobre a contratação administrativa devem ser aplicados à recuperação judicial (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 16.ed, p. 638), ao passo que, de outro lado, Joel de Menezes Niebuhr sustenta posição diametralmente oposta (in Licitação Pública e Contrato Administrativo, 4.ed., p. 447).

Em seu voto, o Ministro Gurgel de Faria sustentou ser “incabível a automática inabilitação de empresas em recuperação judicial unicamente pela não apresentação de certidão negativa, principalmente considerando que a Lei n. 11.101, de 09/02/2005, em seu art. 52, I, prevê a possibilidade de elas contratarem com o Poder Público, o que, regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação”.

Tal assertiva esteve, na espécie, fundada na verificação de que “o escopo primordial da Lei n. 11.101/2005, nos termos do art. 47, é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores (…) diferentemente da concordata, cujo objetivo precípuo era o de assegurar a proteção dos credores e a recuperação do seu crédito”.

É exatamente neste pormenor que reside a diretriz mais adequada à exegese da questão, a qual reflete uma nova conformação jurídica do princípio da preservação da empresa no Direito concursal.

Entende-se o princípio da preservação da empresa como diretriz à atuação estatal no regime concursal, decorrente da norma constitucional que estabelece o trabalho e a livre iniciativa como valores da República, segundo a qual todas as atividades sejam exercidas sempre com o escopo de, a par de resguardar direitos creditórios, viabilizar a manutenção da fonte produtora mediante superação da crise econômico-financeira sobretudo em decorrência de sua função social.

A promulgação da Lei n.º 11.101, de 2005, especificamente quanto ao particular da possibilidade de recuperação do empreendimento, repercutiu em substantiva modificação atinente ao regime de concordatas fixado no Decreto-lei n.º 7.661, de 1945, sobretudo porque altera o foco de deliberações acerca da continuidade do empreendimento.

Noutros termos, especificamente no tocante ao instrumento processual reservado à possibilidade de recuperação do empreendimento em crise, o centro das deliberações quanto à manutenção da empresa deixa de estar atrelado à jurisdição para ser reservado prioritariamente aos próprios credores.

Tal alteração privilegia soluções negociais que tenham enfim o propósito de salvaguardar a atividade econômica do empresário em crise, o que atende não apenas a função social do empreendimento mas dos próprios credores, a que a par de receber seu crédito, ainda que mediante novação, mantém ativo seu parceiro comercial.

O importante precedente do Superior Tribunal de Justiça identifica justamente a modificação de regimes jurídicos estabelecido pela entrada em vigor da Lei n.º 11.101, de 2005, o que acaba por inviabilizar a extensão irrestrita, à recuperação judicial, das prescrições de outros diplomas referentes à concordata.

Neste toar de ideais, conquanto o art. 31, inciso II, da Lei n.º 8.666, de 1993, estabeleça como condição à qualificação econômico-financeira no procedimento licitatório a apresentação de “certidão negativa de falência ou concordata”, não há como se possa ter a referida exigência ao empresário em recuperação judicial.

A razão ao descabimento da extensão da exigência não remonta apenas à incompatibilidade lógica entre os regimes jurídicos da concordata e da recuperação judicial, notadamente quanto ao valor jurídico preponderante, mas também à necessidade de se assegurar força normativa a todas as prescrições da Lei n.º 11.101, de 2005.

Com efeito, o art. 52, inciso II, da Lei n.º 11.101, de 2005, prescreve expressamente que a admissão do processamento da recuperação judicial “determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para a contratação com o Poder Público”, o que revela a absoluta inaplicabilidade da exigência do art. 31, inciso II, da Lei n.º 8.666, às recuperações judiciais.

A dicção do art. 52, inciso II, da Lei n.º 11.101, de 2005, revela justamente uma releitura do princípio da preservação da empresa promovida pelo legislador, ao sublinhar que, frente a prevalência da solução negocial dos credores no procedimento de recuperação judicial, haveria de lhe ser admitida inclusive a participação em concorrências públicas.

Tal medida viabiliza um amplo exercício da atividade econômica no curso do processo de recuperação, com o escopo de aumentar as chances da superação da crise econômico-financeira de modo a assegurar maior atendimento ao princípio da preservação da empresa.

Em sendo prevalente o propósito de fazer sobreviver o empreendimento, fundamental que o próprio Estado participe do mencionado esforço, admitindo que, atendidas as exigências legais referentes ao cumprimento do objeto da concorrência pública com qualificação técnica e econômica, o empresário em recuperação judicial participe com igualdade de condições de procedimentos licitatórios.

Não há dúvidas de que, dado o caráter público do procedimento de seleção e de contratação do empresário e a natureza, também pública, do objeto do certame, a seleção deverá atentar invariavelmente para a necessária comprovação da capacidade técnica e financeira do empreendimento em recuperação de adimplir o objeto da avença.

Tal premissa, contudo, não permite a prévia inadmissão do empresário em recuperação judicial em procedimentos licitatórios face a nova dimensão dada pela Lei n.º 11.101, de 2005, ao princípio da preservação da empresa.

Foi exatamente esta a diretriz fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no importante aresto em apreciação, cuja observância em outras esferas do Poder Judiciário, a despeito de não dotado de eficácia erga omnes, consistirá em importante instrumento à efetivação da preservação social da empresa.

Referências
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