Patrimônio de afetação e insolvência empresarial

Taciani Acerbi Campagnaro Colnago Cabral 1

Transcorria o mês de março de 1999 quando foi decretada a falência da ENCOL S.A. A crise da empresa, entretanto, já se disseminava e atingia vários setores do mercado imobiliário há mais tempo.

A companhia, criada ainda na década de 1960 e que alcançou o posto de maior do setor na América Latina, deixou inúmeras marcas de sua atividade na sociedade brasileira.

Levantamentos da imprensa indicam que, naquele momento, a companhia deixava, por todo país, 519 obras inacabadas, envolvendo mais de 43 mil unidades habitacionais, além de dívidas da ordem de R$ 1 bilhão.

São evidentes os reflexos que tal circunstância na sociedade brasileira, destacando-se, de um lado, a situação de cada um dos mencionados credores e seus núcleos familiares, que viam ruir o sonho da casa própria, bem como, de outro banda, o contexto referente à ocupação do solo urbano das grandes capitais, que passaram a contar com inúmeras obras abandonadas, as quais são ordinariamente envolvidas em inúmeros problemas sociais.

É verdade que a práxis reporta exemplos de superação da dita situação, ordinariamente relacionados a uma iniciativa hercúlea de grupos de credores, diretamente relacionadas com a pequena quantidade de pendências de determinadas obras específicas.

Entretanto, ainda assim, não há como negar a excepcionalidade das mencionadas soluções.

Foi justamente neste cenário que, de um lado, o próprio mercado, bem como, de outra banda, o legislador, implementaram medidas direcionadas à constituição de contexto que evitasse a repetição das graves situações vivenciadas.

Quanto ao mercado, a solução adotada vem sendo no sentido de implementar SPE’s, ou sociedades de propósito específico, as quais, a despeito da falta de previsão legal específica, se prestam a viabilizar a execução de projeto específico ou empreendimento, normalmente de custo elevado, com diminuição do risco de insolvência dos empreendedores.

No âmbito legislativo, de outro norte, a tentativa de modificar o cenário decorrente da insolvência no ramo da construção civil foi implementada com a promulgação da Lei n.º 10.931, de 2004, editada com o propósito de garantir a finalização de incorporações e a entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes.

Dentre as medidas adotadas no referido diploma, a instituição da opção de patrimônio de afetação se presta a vincular a propriedade imobiliária correspondente à terra nua e todas as acessões vinculadas à conclusão da respectiva incorporação.

Adotada a mencionada opção, o incorporador constitui, inegavelmente, uma vantagem aos adquirentes das unidades imobiliárias, tendo em vista que efetivada uma especialização patrimonial, com seu isolamento do restante do ativo da empresa, de modo a assegurar que aquele imóvel específico, suas acessões e demais bens vinculados a incorporação sejam, todos eles, empregados à efetiva conclusão do empreendimento.

A mencionada segmentação patrimonial, de outro lado, isola parcelas patrimoniais do incorporador vinculadas às incorporações dos demais bens da sociedade, entretanto, de outro lado, separa ainda entre cada uma das incorporações o acervo patrimonial a ela vinculada, o que aumenta consideravelmente a probabilidade de entrega efetiva das unidades habitacionais de cada uma delas.

Há claramente uma opção legislativa de privilegiar os aspectos sociais vinculados ao direito à moradia, enquanto valor social inerente à cidadania e aos direitos inerentes à personalidade, ainda que a referida medida possa repercutir, pontualmente, em prejuízo aos demais credores.

Nesta toada, as crises suportadas pelo empreendedor, no caso da afetação patrimonial das incorporações imobiliárias, tendem a não contaminar ou atingir a viabilidade da efetiva entrega das unidades imobiliárias, na medida em que o art. 31-A, §1º, da Lei n.º 10.931, de 2004, prescreve que “o patrimônio de afetação não se comunica aos demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”, inclusive na hipótese de sua cessão total ou parcial (art. 31-A, §4º, da Lei n.º 10.931, de 2004).

A questão que se coloca, então, reside em identificar o regime jurídico aplicável à insolvência do empreendimento, nas hipóteses de constituição de patrimônio de afetação.

Quanto ao tema, a Lei n.º 11.101, de 2005, prescreve, especificamente em art. 119, que “nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes (…) IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer”.

Em ratificação da prescrição, a própria Lei n.º 10.931, de 2004, acresce que “os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação” (art. 31-F).

Nesta toada, atendendo justamente o escopo da constituição dos patrimônios de afetação, em salvaguarda do direito à moradia dos adquirentes das unidades autônomas, o terreno e suas acessões, além dos direitos creditórios e obrigações a ele vinculados, não se sujeito aos efeitos da falência, de modo a não serem nem mesmo arrecadados.

Assim, o mencionado acervo patrimonial – englobando não apenas seu ativo (terreno, acessões e direitos) mas também o passivo a ele diretamente vinculado (obrigações e dívidas de modo geral) – seguirão com administração destacada, separada da massa, até o advento de termo, no caso da afetação haver sido fixada com prazo certo, ou o cumprimento de sua finalidade (v.g. a conclusão de incorporação imobiliária).

Somente após o encerramento dos efeitos da afetação – seja por decurso de prazo, seja pelo atendimento de sua finalidade – caberá ao administrador judicial promover a identificação e arrecadação de eventual saldo, agregando-o à massa falida para regular sujeição ao concurso de créditos.

A definição legislativa tem, à toda prova, o propósito de assegurar o direito fundamental à moradia, em detrimento dos interesses de credores, tal como se pode deliberar ante a instituição do patrimônio de afetação.

Tal assertiva, entretanto, sinaliza solução para a maior controvérsia decorrente da conciliação entre o instituto do patrimônio de afetação e a crise empresarial, referente à identificação das consequências da opção do mencionado destaque patrimonial e as recuperações judiciais.

Com efeito, a essência da recuperação judicial, tanto em sua modalidade judicial, quanto na forma extrajudicial, é justamente o emprego de instrumentos instituídos na Lei n.º 11.101, de 2005, com o fito de viabilizar a reestruturação da empresa em crise, viabilizando o prosseguimento de suas atividades.

Ora, é justamente o prosseguimento de suas atividades que viabilizar o atendimento do maior escopo da instituição de patrimônio de afetação, consistente em salvaguardar incorporações imobiliárias dos efeitos da insolvência, assegurando assim o direito fundamental à moradia dos adquirentes das unidades autônomas.

Portanto, em sede conclusiva, é de se afirmar que, na vigência da recuperação judicial, a instituição de patrimônio de afetação não produzirá quaisquer efeitos, os quais, todavia, haverão de ser amplamente implementados no caso da conversão da medida de reestruturação empresarial em falência, viabilizando portanto ampla vigência à prescrição da Lei n.º 10.931, de 2004.

Referências

ALBENTOSA, Leopoldo Pons (org).  Análisis Comparado de la Ley Concursal con su reforma.  2.ed.,  Madrid:  Tirant to blanch,  2003.

ASCENSÃO, José de Oliveira.  Direito Civil – Reais.  5.ed.,  Coimbra:  Coimbra Editora,  2000.

BEVILÁQUA, Clóvis.  Direito das coisas.  Brasília:  Senado Federal,  2003

CEREZETTI, Sheila C. Neder & MAFFIOLETTI, Emanuele Urbano.  Dez anos da Lei n.º 11.101/2005: Estudos sobre a Lei de Recuperação e Falências.  Coimbra:  Almedina,  2015. 

 1 Advogada partner da Acerbi Campagnaro Colnago Cabral Administração Judicial (www.colnagocabral.com.br), de Belo Horizonte-MG, com atuação específica em recuperações judiciais e falências. Mestranda em Direito Empresarial. Administradora Judicial habilitada em recuperação judicial e falência pela TMA Brasil. Especialista em Direito Empresarial e Direito do Trabalho. Associada ao TMA Brasil, ao IWIRC e ao IBAJUD. Autora de diversos livros e artigos sobre insolvência empresarial.

2 Neste mesmo propósito, o legislador, ao promulgar a Lei n.º 10.931, de 2004, também estabeleceu um regime especial tributário incidente em relação ao terreno e às acessões objeto de incorporação, assim como aos demais bens e direitos a ela vinculadas, definindo que tal acervo patrimonial não responderá por dívidas tributárias da incorporadora relativas ao IRPJ, à CSLL, à CONFINS e contribuição do PIS-PASEP (art. 3º da Lei n.º 10.931, de 2004).

3 A previsão expressa no art. 31-A da Lei n.º 10.931, de 2004, é no sentido de que a instituição de patrimônio de afeção decorre de “critério do incorporador”, acentuando seu caráter facultativo.

4 Código Civil, art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.

5 Pertinente registrar que, por expressa definição normativa, as acessões correspondem a modalidade de aquisição de propriedade imobiliária segundo a qual se agrega à propriedade principal tudo que lhe for adicionado por união ou incorporação (BEVILÁQUA, Clóvis.  Direito das coisas.  Brasília:  Senado Federal,  2003). A acessão pode se operar por formação de ilhas, por aluvião, por avulsão, por abandono de álveo e por plantações ou construções, quando assumem a qualificação de acessão artificial (art. 1248 do Código Civil).

6 A teor do art. 28, parágrafo único, da Lei n.º 4.591, de 1964, “considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”.

7 Constituição Federal, art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.