A recuperação judicial e os contratos garantidos por alienação fiduciária

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E OS CONTRATOS GARANTIDOS POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

Taciani Acerbi Campagnaro Colnago Cabral

Mestranda
tacicampagnaro@hotmail.com
ORCID: 0000-0001-8501-8442
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6993051313730323

Natália Bouéres Melo Diniz

Mestranda
nboueres@gmail.com.
ORCID: 0000-0001-5663-7586
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8952066325174147

RESUMO:

O presente estudo objetiva analisar a proteção conferida pela Lei n.º 11.101, de 2005, alterada pela Lei n.º 14.112, de 2020, aos credores detentores de contratos com cláusulas de garantia do tipo alienação fiduciária para concessão de crédito, bem como as suas aplicações e consequências quando da existência de pedido de recuperação judicial por empresa devedora. Dessa forma, esse estudo pretende estimar as determinações legais, bem como a participação da jurisprudência e da doutrina na formação de pensamento quanto ao tema.

Palavras-chave: Recuperação judicial; Alienação fiduciária; Garantia
de crédito.

1. INTRODUÇÃO

A gestão empresarial envolve, dentre tantas outras responsabilidades, senão a mais importante, a organização financeira da empresa, no sentido de se buscar um equilíbrio entre as entradas e saídas, com o objetivo de se ter um cenário financeiro saudável.

Em razão disso, a prática de obtenção de empréstimos para formação de capital de giro, para reforço financeiro ou mesmo para aquisição de bens se mostra o caminho adotado por grande parte das empresas. Assim, seja com o cunho de investimento, seja para a restruturação em momentos de crise, as empresas muita das vezes contam com o apoio de instituições financeiras para o avanço de sua atividade empresarial.

Para tanto, as instituições concessoras de crédito bancário contam com regras legais que possibilitam a mitigação dos seus riscos, como o caso enfrentado neste estudo. Isso porque a alienação fiduciária além de conceder garantias ao cedente do crédito em caso de eventual descumprimento obrigacional, em eventual recuperação judicial, afasta a rópria sujeição do crédito ao procedimento recuperacional, transformando-o em crédito extraconcursal.

Assim sendo, muito embora a Lei n.º 11.101, de 2005, recentemente alterada pela Lei n.º 14.112, de 2020, afaste os créditos garantidos pela cláusula de alienação fiduciária daqueles sujeitos à recuperação judicial, referida concede diversos benefícios ao devedor, entre eles, a aplicação do princípio da preservação da empresa, o stay period e a proteção aos bens essenciais da empresa.

Nesse sentido, o presente trabalho pretende enfrentar a discussão acerca do entendimento aplicado aos créditos garantidos pela alienação fiduciária, em seus aspectos legal, doutrinário e jurisprudencial, de maneira a se traduzir a atualidade do tema e a sua aplicação no direito.

2. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial é um procedimento de restruturação conferido ao devedor pela legislação brasileira, tendo como objetivo evitar a falência de uma empresa, possibilitar a reorganização de suas atividades e, também, a redefinição de seu passivo, viabilizando o soerguimento da empresa.

Nesse sentido, é de se ver que o processo de recuperação judicial é forte aliado na retomada da atividade econômica do país, já que ela possibilita a negociação dos débitos em massa pela empresa devedora para manutenção de sua atividade econômica.

Assim, o pedido de recuperação judicial pelo devedor, a partir de uma análise eminentemente jurídica, exige uma série de condições para o seu processamento, de forma que tais condições estão delineadas nos artigos 48 e 51 da Lei n.º 11.101, de 2005.

Ademais, o legislador estabeleceu o princípio da preservação da empresa em seu artigo 47, no referido diploma legal, como norteador do processo viabilizando a efetividade do procedimento da recuperação judicial.

Paralelo ao princípio da preservação da empresa, temos em destaque a própria viabilidade da empresa que pretende se recuperar. Isso porque o procedimento de recuperação judicial é dedicado às empresas que de fato têm a chance de se soerguer, ou seja, tenham caixa para o enfrentamento de uma ação judicial.

Tal situação se justifica pelo fato de o processo de recuperação judicial exigir um investimento financeiro e de equipe para a própria tramitação judicial abrangendo, dentre outras, despesas com custas processuais, despesas postais, honorários advocatícios, remuneração do administrador judicial e possível realização de uma assembleia-geral de credores.

Por outro aspecto relevante, destaca-se que a recuperação judicial não está ligada apenas à situação da empresa enquanto estabelecimento comercial, há também um enfoque humano envolvido, seja pelos sócios, seja pela universalidade de empregados, fornecedores e credores.

Nesse sentido, a recuperação judicial está ligada a um conjunto de fatores que visam um único objetivo, qual seja, que a empresa cumpra a sua função social.

3. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA, STAY PERIOD E OS BENS ESSENCIAIS DO DEVEDOR

3.1. Princípio da preservação da empresa

A empresa em recuperação judicial conta com diversos benefícios legais regidos pela Lei n.º 11.101, de 2005, recentemente alterada pela Lei n.º 14.112, de 2020, que viabilizarão a sua manutenção seja enquanto perdurar o procedimento de recuperação judicial, a exemplo do stay period, seja após a sua concessão a exemplo da possibilidade de pagamento de seus débitos com carência, parcelamento e deságio.

Como esclarecido alhures, o principio da preservação da empresa está disposto no artigo 47 da lei supracitada, transcrito a seguir:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Dessa maneira, é perceptível destacar que o legislador buscou conferir ao devedor estímulo para o seu soerguimento, por meio da preservação da empresa, da sua função social e estimulo à atividade econômica.

O princípio da preservação da empresa protege o núcleo da atividade econômica, a fonte produtora de serviços ou mercadorias e a sociedade empresária, refletindo diretamente em seu objeto social.

Conforme muito bem explanado pelo Min. Marco Buzzi:

[…] Não se pode olvidar que o princípio da preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica figuram como cânones interpretativos expressamente previstos no
texto legal (art. 47 da Lei n.º 11.101/2005), tornando imperativa a manutenção da sociedade empresarial desde que possível e viável ao bom funcionamento do mercado. (STJ, (AgInt no AREsp
1370644/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 24/06/2019, DJe 28/06/2019)

Assim, ao se submeter ao processo de recuperação judicial, a empresa faz análise de viabilidade da atividade tendo como base o passivo financeiro sujeito à recuperação judicial, bem como as alternativas que comprovam a viabilidade da manutenção das suas atividades.

Nesse sentido, Newton de Lucca (2015, p. 35), retifica que o princípio da preservação da empresa tem função de efetividade como exposto a seguir:

[…] Volvendo-se à análise do princípio da preservação da empresa, verifica-se que o mesmo tem sua expressa previsão no artigo 47 da Lei n. 11.101/2005, o qual traz em seu texto disposições
gerais, que deverão ser atendidas a fim de permitir a efetiva manutenção das empresas economicamente viáveis e que se encontram, momentaneamente, em dificuldades financeiras. […]

Conforme se infere do trecho acima, um ponto de extrema relevância para que se dê a recuperação judicial diz respeito à viabilidade da empresa que pretende, como destacado no introdutório deste estudo, o seu soerguimento. Isso porque o procedimento de recuperação judicial é dedicado às empresas que de fato têm a chance de se soerguer, ou seja, tenham caixa para o enfrentamento de uma ação judicial.

Ademais, a recuperação judicial não está ligada apenas à situação da empresa enquanto estabelecimento comercial, mais que isso, ao instituto deve ser conferido o enfoque humano seja pela universalidade de empregados, seja pelos fornecedores e credores.

Sob esse aspecto, valiosos são os ensinamentos de Rodrigo Tellechea, João Pedro Scalzilli e Luis Felipe Spinelli (2018, p. 21), a seguir:

[…] trata-se de seara jurídica cuja história é riquíssima e cujo desenvolvimento pode ser traduzido pelo subtítulo empregado nesta obra: “da execução pessoal à preservação da empresa”. É essa a história que se quer contar: o processo de evolução do direito da insolvência desde uma execução que recaía exclusivamente sobre o corpo do devedor para um conjunto de normas que busca
preservar o valor da empresa, no melhor interesse de todas as classes afetadas pela crise do negócio – e como isso pode ajudar a explicar e a aplicar o direito vigente. (grifo meu)

Com isso, tem-se que a recuperação judicial está ligada a um conjunto de fatores que visam um único objetivo: que a empresa cumpra a sua função social.

Por esse motivo, o legislador conferiu ao devedor uma série de benefícios com o intuito de se permitir a preservação da empresa. A esse respeito, menciona-se dois deles: a figura do stay period e a proteção dada aos bens essenciais da empresa, que melhor se explanará na sequência.

3.2 . Stay period

O stay period diz respeito ao prazo legal de suspensão das execuções e cobranças contra o devedor, para que seja possível a sua reestruturação e, consequentemente, o cumprimento de seu plano de recuperação judicial.

Relativamente ao estudo em epígrafe, tem-se em vista a importância da prorrogação do stay period, haja vista os consequentes benefícios para o devedor que possui débitos gravados de alienação fiduciária.

Tal previsão legal foi recentemente alterada pela Lei n.º 14.112, de 2020, tendo em vista a defasagem do diploma anterior que culminou em diversas interferências jurisprudenciais.

A esse respeito, Fabio Ulhoa (2021, p. 72-73) expõe que:

O prazo de suspensão da inexigibilidade das obrigações sujeitas aos feitos da recuperação judicial (art. 6º, § 4º) pode ser prorrogado em três hipóteses. A primeira prorrogação é a prorrogação por mais de 180 dias, por despacho do juiz. Seu único requisito é a ausência de ação do devedor que tenha contribuído para a superação do lapso temporal. Proponho chama-lo de “prorrogação ordinária”, até porque é difícil a recuperação judicial em que não acontece. A segunda hipótese é a prorrogação, por mais 180 dias, em razão da apresentação tempestiva de plano alternativo por credor. Ela independe de despacho judicial e decorre diretamente da previsão legal (art. 6º, § 4º-A, II). Proponho chamá-la de “prorrogação
extraordinária”, porque tende a ser bastante rara. A terceira hipótese de prorrogação de prazo de suspensão de exigibilidade das obrigações sujeitas aos efeitos da recuperação judicial, decorre da deliberação da maioria dos credores em AGC. É muito comum, sobretudo nas recuperações mais complexas, que uma única e mesma assembleia (desde que assim referida) se desdobre em sessões sucessivas […]
Proponho chamar essa terceira hipótese de “prorrogação negocial”. (grifo meu)

Atualmente o instituto do stay period está disposto no artigo 6º, §§ 4º e 4º-A, da Lei n.º 11.101, de 2005, recentemente alterada pela Lei n.º 14.112, de 2020, conforme se transcreve a seguir:

Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
I – suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor
sujeitas ao regime desta Lei;
II – suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
III – proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
[…]
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
§ 4º-A. O decurso do prazo previsto no § 4º deste artigo sem a deliberação a respeito do plano de recuperação judicial proposto pelo devedor faculta aos credores a propositura de plano alternativo, na forma dos §§ 4º, 5º, 6º e 7º do art. 56 desta Lei, observado o seguinte:
I – as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo não serão aplicáveis caso os credores não apresentem plano alternativo no prazo de 30 (trinta) dias, contado do final do prazo referido no § 4º deste artigo ou no § 4º do art. 56 desta Lei;
II – as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão por 180 (cento e oitenta) dias contados do final do prazo referido no § 4º deste artigo, ou da realização da assembleia-geral de credores referida no § 4º do art. 56 desta Lei, caso os credores apresentem plano alternativo no prazo referido no inciso I deste parágrafo ou no prazo referido no § 4º do art. 56 desta Lei.

Como é possível observar no referido dispositivo, bem como da citação doutrinária anterior, o legislador conferiu ao devedor diversos benefícios com o fito de possibilitar o seu real soerguimento pelo prazo de 180 (cento e oitenta dias), podendo ser prorrogável em igual período, por uma única vez.

Além disso, conferiu a possibilidade da prorrogação, bem como estipulou alguns critérios para a sua consecução, criando, nas palavras do doutrinador Fabio Ulhoa, 3 (três tipos de prorrogação: prorrogação ordinária, prorrogação extraordinária e prorrogação negocial.

É importante pontuar que antes da reforma da Lei n.º 11.101, de 2005, não havia previsão legal quanto à renovação do prazo estipulado no §4º do artigo 6º a referida lei, de maneira que se firmou posicionamento consolidado nos tribunais pela renovação, em atenção ao princípio da preservação da empresa aliado ao fundamento de que a empresa em recuperação judicial não deu causa a morosidade do processo.

Nesse sentido, na prática, tinha-se que à empresa era conferida a prorrogação do período de suspensão, desde que se desse com o objetivo de preservar as suas atividades e que ela não tivesse dado causa a demora da marcha processual.

Com a alteração dada pela Lei n.º 14.112, de 2005, surge uma lacuna quanto a limitação legal da prorrogação do período de suspensão e a própria aplicação do princípio da preservação da empresa.

A propósito, tem-se que recentes julgados do ano 2021, já demonstram um caminho dos Tribunais no sentido de valorizar a aplicação do princípio da preservação da empresa em detrimento do novo
dispositivo legal, em atenção à manutenção da atividade econômica e da função social da empresa, como se observa das jurisprudências colacionadas a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL
– STAY PERIOD – PRORROGAÇÃO – VEDAÇÃO LEGAL – INSUBSISTÊNCIA – ADVENTO DA LEI Nº 14.112/2020 – REFORMA FALIMENTAR – PRESERVAÇÃO DA EMPRESA – ART. 47
– ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL
ANTERIORES – PRECEDENTES DO TJMG E STJ – RECURSO
NÃO PROVIDO.
1. Quando a demanda recuperacional se mostrar complexa e a Assembleia Geral de Credores não ocorrer antes do fim da suspensão aludida pelo art. 6º da LREF, cabível a prorrogação do stay
period com fincas na preservação da empresa, nos moldes do art. 47 do mesmo diploma legal.
2. A prorrogação do stay period por período igual foi possibilitada pela nova redação do art. 6º, §4º, da LREF, diante do advento
da Lei nº 14.112/2020.
3. Segundo a Recomendação nº 63, de 31 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, recomenda-se aos Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência a adoção de medidas para a mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo Coronavírus – COVID-19. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv
1.0000.18.090691-9/010, Relator(a): Des.(a) Armando Freire, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/04/0021, publicação da súmula em 28/04/2021).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL
– SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES AJUIZADAS EM
FACE DA RECUPERANDA (STAY PERIOD) – PRORROGAÇÃO – POSSIBILIDADE – LEI 14.112/2020 QUE ALTEROU O ART. 6º, §4º DA LEI 11.101/2005 – RECOMENDAÇÃO Nº63 DE 31/03/2020 DO CNJ – DECISÃO MANTIDA.
Nos termos Lei 14.112/2020, que alterou o art. 6º, §4º da Lei 11.101/2005 há possibilidade de prorrogação do prazo de 180 dias da suspensão do curso das ações e execuções singulares movidas contra a empresa recuperanda (stay period). – Considerando que não foi demonstrada qualquer conduta desidiosa por parte da empresa recuperanda no sentido de dificultar o andamento da recuperação judicial; e, considerando, ainda que eventual prosseguimento das execuções e ações em desfavor da recuperanda pode lhe resultar consequências financeiras danosas
ou até mesmo impedir a superação da crise econômica, revela-se plausível o deferimento do pleito de prorrogação do stay period previsto na Lei 14.112/2020, que alterou o art. 6º, §4º da Lei
11.101/2005, consoante manifestação da Administradora Judicial e também do Ministério Público nos autos de origem, razão pela qual a manutenção da r. decisão agravada é medida que se impõe.
(TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.001864-6/002, Relator(a): Des.(a) Yeda Athias, 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 13/04/0021, publicação da súmula em 19/04/2021).

Destaca-se que dentre as jurisprudências colacionadas, há processos distribuídos no ano de 2018, demonstrando que, mesmo após a vigência da Lei n. 14.112, de 2005, que limita a prorrogação do stay period por apenas mais 1 (um) período, os tribunais vêm seguindo a aplicação do princípio da preservação da empresa, em detrimento da lei.

Nesse contexto, percebe-se que a questão envolvendo o princípio da preservação da empresa e a atual previsão legal que limita a prorrogação do benefício do stay period, por apenas mais um período, de certo passará por analises mais profundas nos tribunais o que poderá inclusive ser relativizado em benefício da empresa, o que exigirá dos envolvidos nos processos de recuperação judicial, seja das partes interessadas, seja do judiciário, um trabalho eficiente para que se alcance a restruturação da empresa no prazo legal.

3.3. Os bens essenciais do devedor

Os bens essenciais do devedor receberam proteção do legislador quando da elaboração da Lei n.º 11.101, de 2005, o que foi mantido também na recente alteração pela Lei n. 14.112, de 2020, já que restou mantida a disposição que “a empresa não poderá perder o estabelecimento onde está situada, bem como não poderá ser privada dos bens essenciais à sua atividade empresarial”, conforme inteligência prevista no artigo 49, § 3º.

Assim sendo, o artigo 49, § 3º, da Lei n.º 11.101, de 2005, assegura ao devedor a proteção aos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial.

Ademais, conforme já mencionado, o artigo 47 da Lei n.º 11.101, de 2005, dispõe que “a recuperação judicial tem por objeto viabilizar a superação de situação de crise econômico-financeira do devedor”, dessa forma os bens essenciais à manutenção da atividade empresária devem ser vistos sob o enfoque do princípio da preservação da empresa em conjunto com a aplicação da função social, adotando-se medidas preventivas.

A jurisprudência nos tribunais vem sedimentando o entendimento no sentido de proteção aos bens essenciais da empresa, como se pode observar do trecho extraído de julgamento de relatoria da i. Ministra Nancy Andrighi, conforme a seguir:

[…] No que diz respeito à proibição de retirada dos bens essenciais do estabelecimento do devedor após escoado o prazo de suspensão, registro que o mero encerramento do prazo de suspensão não dá ensejo à automática retomada de bem essencial do estabelecimento do devedor, considerando que o próprio juiz deferiu o pedido de suspensão de tais ações. (fl. 692, e-STJ) Assim sendo, devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e fundamentado corretamente o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação dos arts. 489 e 1022 do CPC, incidindo, quanto ao ponto, a Súmula 568/STJ […]. (GRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.587.023 – GO (2019/0281143-4). RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI. DATA DA PUBLICAÇÃO 03/03/2020) (grifo nosso)

Nessa toada, o Superior Tribunal de Justiça consolidou posicionamento no sentido de que quaisquer atos judiciais que possam colocar em risco a eficácia do plano de recuperação, devem ser submetidos ao crivo do juízo universal.

Tal linha de raciocínio, firmou a tese de que o juízo universal é o competente para decidir acerca da essencialidade do bem, ainda que se trate de créditos garantidos por alienação fiduciária, afastando-se, desse modo, a exceção do § 3º do art. 49 da Lei n.º 11.101, de 2005.

Nesse sentido, por mais que o crédito garantido por clausula de alienação fiduciária não se sujeite ao concurso de credores até o limite da sua garantia, dada a sua extraconcursalidade legal, o devedor conta com a proteção dos bens essenciais inerentes ao seu soerguimento, de modo que o juízo da recuperação atuará exercendo o controle sobre atos de constrição ou expropriação patrimonial que prejudiquem a reestruturação do devedor.

Sobre os bens de capital Fabio Ulhoa (2021, p. 179) pontua que

Os bens de capital sobre os quais recai a garantia da alienação fiduciária não podem ser retirados da posse da sociedade em recuperação judicial enquanto não transcorrido o prazo de suspensão
das execuções. Aquela expressão tem sido entendida, no Poder Judiciário, de modo restritivo, como referida apenas aos insumos que não se transferem, na circulação de mercadoria, aos adquirentes ou consumidores dos produtos fornecidos ao mercado pela sociedade empresária em recuperação sobre bens essenciais ao exercício de sua atividade, excluem-se desse universo os insumos incorporados aos produtos fabricados ou comercializados, que a mesma sociedade recoloca na cadeia de circulação de mercados.
[…]

Nesse sentido, é de se ver que a jurisprudência entende que há uma separação aplicada aos bens do devedor, ou seja, se o bem é transferível ou não transferível. Isso porque, para o entendimento majoritário dos tribunais, a matéria-prima não é considerada bem de capital, uma vez que sua apreensão, em tese, não geraria a paralisação das atividades da empresa.

Isso porque se considera bem de capital ou de produção aquele que não é consumido no processo produtivo, a exemplo de máquinas e equipamentos, já a matéria-prima, no entendimento jurisprudencial, não se trata de bem de capital e, portanto, não seria bem essencial, uma vez que a sua apreensão, em tese, não resultaria na paralisação das atividades da empresa.

Entendimento similar é aplicado à garantia dada em dinheiro a receber, chamados nos contratos de empréstimos como “recebíveis”. Muito embora os valores recebidos pela empresa sirvam de giro financeiro para as empresas, percebe-se a prática de seu bloqueio no decorrer do processo de recuperação judicial, justamente por ele não ser considerado bem de capital.

Com isso, percebe-se que tal posicionamento gera inúmeros recursos, já que, muitas das vezes matéria-prima ou os recebíveis impliquem na própria subsistência da empresa.

Nesse sentido, Fabio Ulhoa (2021, p. 180) pondera que

[…]
Claro, a se prestigiar o critério da “paralisação das atividades empresariais” como definidor dos bens de produção, como sugerido, poderá haver hipóteses em que o insumo, mesmo o incorporado
aos produtos comercializados ou fabricados pela sociedade empresária em recuperação j, se classifique nessa categoria de bens. Se todo o estoque de matéria-prima está alienado fiduciariamente
e não há condições mercadológicas para sua reposição no caso de execução da garantia, pode esta acarretar a paralisação da atividade empresarial.
[…]

Com isso, tem-se que deve existir do poder jurisdicional uma análise discricionária, sob pena de se lesar ainda mais uma empresa em recuperação, acaso se limite aos conceitos e não se analise cada situação de forma pormenorizada, dada a essencialidade que cada bem representa para a atividade empresarial.

4. A EXTRACONCURSALIDADE DOS CRÉDITOS DETENTORES DE GARANTIA FIDUCIÁRIA E A PROTEÇÃO DA EMPRESA

Os contratos de concessão de crédito detentores de cláusulas de alienação fiduciária contam com proteção legal, conferida pela Lei n.º 11.101, de 2005, já que lhe é conferida a extraconcursalidade da recuperação judicial, conforme se observa da primeira parte do § 3º do artigo 49 de referida Lei, transcrito na sequência:

[…] Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos
contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais […]

É importante pontuar que mesmo com as recentes alterações promovidas pela Lei n.º 14.112, de 2020, na Lei de Recuperação Judicial e Falências, a redação do art. 49, § 3º, da Lei n.º 11.101, de 2005, permaneceu inalterada, mantendo-se a proteção aos créditos garantidos por alienação fiduciária, os quais deverão ser considerados extraconcursais.

Ocorre que significativa parte dos empréstimos bancários concedidos às empresas e, também, às pessoas físicas, é gravada pela cláusula de alienação fiduciária, o que traduz um cenário de fragilidade para o devedor em recuperação judicial, uma vez que nestes casos ele não contará com os benefícios financeiros do procedimento recuperacional, em decorrência da extraconcursalidade conferida a tais créditos.

Por outro lado, o legislador buscou proteger os bens essenciais do devedor nos termos da segunda parte do § 3º do artigo 49, a seguir:

[…] não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

Nesse sentido, é de se ver que o artigo 49, § 3º, da Lei n.º 11.101, de 2005, traz em sua parte final importante ressalva para determinar que, mesmo que o crédito esteja garantido por alienação fiduciária, durante a vigência do stay period, não será permitida a venda ou a retirada dos bens de capital essenciais à atividade empresarial do devedor.

Isso porque a referida vedação não tem o condão de retirar a extraconcursalidade do crédito, mas sim de determinar a suspensão dos atos de constrição sobre bens essenciais do devedor, enquanto perdurar a vigência do stay period, de modo a não comprometer o soerguimento da empresa em recuperação judicial.

Por outro lado, o Enunciado n.º 51 da 1ª Jornada de Direito Comercial dispõe que “o saldo do crédito não coberto pelo valor do bem e/ ou da garantia dos contratos previstos no § 3º do art. 49 da Lei n.º 11.101, 2005 é crédito quirografário, sujeito à recuperação judicial”.

À luz dessa premissa, o TJSP vem firmando o entendimento de que o crédito não coberto pela garantia fiduciária deverá ser enquadrado como quirografário. Veja-se:

Impugnação de crédito. Credor com garantia fiduciária de bens móveis (maquinários). Contratos firmados antes da recuperação judicial e com a especificação dos bens entregues em garantia,
suficientes, segundo a sua avaliação constante dos instrumentos, para garantir integralmente o débito. Crédito extraconcursal. Inteligência do § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005. Eventual essencialidade dos bens entregues em garantia que não influencia na classificação do crédito. Impossibilidade, de qualquer forma, de enquadrá-lo como garantia real se a hipótese é de crédito extraconcursal. Impugnação de crédito. Credor com garantia fiduciária sobre direitos creditórios (duplicatas). Necessidade, como requisito formal da constituição da garantia fiduciária, de especificação do direito creditório cedido, não dos títulos. Entendimento do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 1.797.196/SP. O crédito “performado” (constituído até a distribuição da recuperação) é, mesmo, extraconcursal, pois indiscutível a constituição da garantia fiduciária; o crédito a “performar” (não constituído até a distribuição da recuperação), contudo, deve ser considerado concursal, diante da deficiência da garantia fiduciária, que não se aperfeiçoou. Garantia, na hipótese, que não abrange 100% do crédito da CCB nº 1.773.453. Saldo não coberto pelo valor da garantia que é quirografário. Enunciado 51 da I Jornada de Direito Comercial, do Conselho da Justiça Federal, nesse sentido. Pese a exibição da relação dos títulos, faz-se necessária, a fim de que se evitem dúvidas, a adequação para reconhecer, como extraconcursal, apenas o crédito “performado” e até o limite da garantia fiduciária conferida. Determinação de delimitação, na
origem, do alcance da garantia. Impugnação de crédito. Irresignação, da agravante, com relação aos valores atribuídos pela Administradora Judicial aos inúmeros contratos de crédito que
firmou com o agravado. Embora tenha apresentado alguns documentos, pecou ao deixar de justificar, em suas razões recursais, qualquer razão para a modificação pretendida. Pedido genérico e
que, por isso, não pode ser acolhido. Recurso parcialmente provido, com determinação. (TJSP; Agravo de Instrumento 2252486- 17.2018.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador:
2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Tanabi – 2ª Vara; Data do Julgamento: 24/08/2020; Data de Registro: 25/08/2020)

Dessa maneira, a fração do saldo garantida por alienação fiduciária deverá ser considerada extraconcursal, ao passo que o valor não coberto pela garantia deverá constar na classe quirografária.

Em outras palavras, têm-se que há uma limitação para os créditos até o limite da sua garantia, submetendo-se a diferença ao concurso geral de credores.

Lado outro, em relação ao crédito não sujeito, ou seja, protegidos pela cláusula de alienação fiduciária, os devedores contam, enquanto perdura o stay period, com a proteção pela essencialidade dos bens, somado ao princípio da preservação da empresa, segundo inteligência do parágrafo 3º do artigo 49 e parágrafo 4º do art. 6º da Lei n.º 11.101, de 2005.

Com isso, na prática dos tribunais, são inúmeros os pedidos de suspensão de cobrança e execução, interrupção de consolidação de propriedade, sob a aplicação dos dispositivos legais supracitados.

Isso porque as garantias dadas pelo devedor, em sua maior parte, dizem respeito a bens de capital e, também, a bens essenciais não considerados protegidos, como os insumos, recebíveis, entre outros similares.

Tal cenário resulta de uma participação efetiva das instituições financeiras seja na esfera legislativa, seja na esfera judiciária. Para mais, é perceptível uma proteção significativa dos créditos dos credores financeiros, de forma que os valores mais significativos, em sua maior parte, não são sujeitos ao crivo da recuperação judicial.

Em virtude desse cenário, muitos devedores contam com o apoio do juízo recuperacional e dos tribunais, por meio de liminares, para protegerem seus bens essenciais, sejam eles de capital ou mesmo matérias-primas e insumos, desde que comprovadamente a retirada resulte em sua impossibilidade da continuidade da empresa.

5. CONCLUSÃO

O processo de recuperação judicial busca oportunizar ao devedor o soerguimento ante a possibilidade de se aplicar carência, deságio e parcelamento às dívidas sujeitas ao concurso de credores.

De todo modo, como debatido neste estudo, nem todos os débitos do devedor se sujeitam ao procedimento recuperacional, haja vista as determinações dispostas na Lei n.º 11.101, de 2005.

Assim ocorre com os créditos garantidos por alienação fiduciária, entendidos pela legislação e pela jurisprudência como créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.

Por outro, o legislador, visando amparar a atividade empresarial e seu consequente soerguimento, conferiu proteção aos bens de capital essenciais, o que vem ocorrendo na prática enquanto perdura o stay period e, em alguns casos, até mesmo após a concessão da recuperação judicial, aplicando-se o princípio da preservação da empresa.

Nesse sentido, muito embora os créditos garantidos em alienação fiduciária não se sujeitem ao processo de recuperação judicial, o devedor conta com proteção àqueles essenciais a sua atividade, devendo utilizar os meios processuais cabíveis para a efetivação dessa proteção.

REFERÊNCIAS

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol. 3 – Direito de empresa. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

COELHO, Fábio Ulhoa. Novo manual de Direito Comercial: direito de empresa. 30. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil (Revista dos Tribunais), 2018.

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