A tutela jurisdicional dos mercados e a crise empresarial

As recentes notícias envolvendo gigante do varejo nacional, assim como ocorreu em outros países, suscitou inúmeros questionamentos a respeito dos reflexos da crise de determinadas empresas na integridade do mercado, sobretudo quando as dificuldades dos empreendimentos são permeadas por alegações de fraudes contábeis ou de repartição de lucros incompatíveis com afirmação de dificuldade financeira.

Esse cenário traz ao debate a questão da tutela jurisdicional da integridade do mercado, notadamente a partir do enfoque do bem jurídico tutelado nas figuras penais relacionadas à falência e à recuperação judicial, o que recomenda exame comparativo entre a opção normativa nacional e aquela vigente em outros ordenamentos.

A premissa do exame comparativo proposto, entretanto, pressupõe a identificação de qual o bem jurídico tutelado pela legislação ao definir os delitos referentes às falências e recuperações judiciais.

No pormenor, a despeito de posição pontual no sentido de que o objeto da tutela se refere a acervo patrimonial individualmente considerado, prevalece amplamente a compreensão de que a proteção jurídica está dirigida a bem supraindividual, referente justamente à própria integridade do mercado, à fé pública das relações comerciais, tal como ocorre nos delitos de proteção à ordem econômica.

É justamente este cenário que conduz opção normativa de alguns países, no sentido de constituir estrutura pública de fiscalização das fraudes perpetradas nos cenários de crise empresarial, protegendo em última razão a integridade dos mercados e o desenvolvimento nacional.

Tal se constata, por exemplo, no U.S. Trustee Program (USTP) e do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act dos Estados Unidos e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, especificamente no tocante às medidas de combate à fraude, até mesmo por sua relação direta com a lavagem de capitais.

Esse contexto normativo é de expressa regulação do mercado, especificamente no particular da fiscalização da tutela da crise empresarial objetivando evitar o emprego dos instrumentos da falência e da recuperação judicial para perpetrar fraude empresarial.

Há, portanto, ao menos no cenário normativo dos Estados Unidos e dos países integrantes da União Europeia, uma evidente identificação de que práticas criminosas relacionadas à crise de empresas exigem a instituição de regime público de fiscalização, justamente para viabilizar a salvaguarda da integridade do mercado e da ordem econômica.

A despeito dessa constatação, o legislador brasileiro optou, desde a promulgação da Lei nº 11.101, de 2005, por encerrar a exigência do então denominado inquérito judicial, outrora previsto no artigo 103 do Decreto-lei nº 7.661, de 1945, que tinha justamente o escopo de fiscalizar eventual delito no regime falimentar ou de recuperação judicial.

A opção legislativa retrata a adoção de um regime de fiscalização reservada aos próprios credores e ao Ministério Público, especificamente por seu membro atuante nos processos de falência e de recuperação judicial.

É evidente que a identificação de indícios de prática delitiva ensejará a atuação das autoridades de polícia judiciária na forma do artigo 40 do CPP, todavia, não há como deixar de identificar que no mais das vezes a atuação dos credores se restringe à tutela de seus próprios interesses, o que exalta o papel do Ministério Público neste particular.

Um outro ator de relevo no particular é o próprio administrador judicial, notadamente por sua atribuição de fiscalizar atividades e contas de empresas falidas ou em recuperação judicial, conquanto não se possa extrair do artigo 22 da Lei nº 11.101, de 2005, um papel propriamente investigativo de fraudes empresariais.

Logo, para além de uma atuação direcionada à própria regularidade do procedimento de falência ou recuperação judicial, compete aos credores, ao Ministério Público e ao próprio administrador judicial um papel fundamental na salvaguarda da integridade do mercado, adotando providências para evitar o emprego fraudulento de tais instrumentos de proteção judicial.