O noticiário nacional foi, recentemente, inundado por menção a possíveis fraudes que haveriam permeado crise empresarial que redundou na formulação de pedido de recuperação judicial de gigante do varejo.
Tal cenário não é privativo da realidade brasileira, havendo se notabilizado em inúmeros precedentes do Chapter 11 dos Estados Unidos, que corresponde à medida de reestruturação judicial.
Sem qualquer exame dos casos concretos, afigura-se pertinente identificar qual o tratamento penal que a Lei nº 11.101, de 2005, reserva às situações em que a crise empresarial mantenha relação com fraude na gestão do empreendimento.
A apreciação do tema deve, todavia, ser dirigida pela verificação de que, por força do princípio da função social da empresa, dada sua aptidão de geração de emprego e renda, o eventual emprego da estrutura empresária haverá de repercutir na esfera jurídica específica do indivíduo autor da conduta, e não na própria essência da atividade empresária.
A matéria é regida basicamente pela conjugação dos artigos 168, 172, 173 e 174 da Lei nº 11.101, de 2005, os quais tem por objeto a tipificação da prática fraudulenta relacionada à crise empresarial por parte dos gestores da empresa, de um lado, e a conduta de terceiros que se beneficiem da referida conduta, de outro.
O ponto comum das mencionadas condutas típicas reside na necessidade de decretação da falência, concessão da recuperação judicial ou homologação da recuperação extrajudicial, habitualmente tratada pela doutrina como condição de procedibilidade à ação penal.
A falência, a recuperação judicial e a extrajudicial assumem, porém, a condição de elementos normativos do tipo penal, na medida em que integram a própria conduta típica, de modo que repercutem na própria configuração do ilícito e sua ausência redunda na atipicidade da conduta ou na configuração de outro ilícito penal.
O primeiro enfoque a ser apreciado remonta à prática de fraude no próprio exercício da atividade empresária, por parte do empresário, cuja previsão normativa é reserva aos artigos 168 e 172 da Lei nº 11.101, de 2005.
A definição base da tipificação de fraude nos procedimentos de falência e recuperacional é disposta no artigo 168 da Lei nº 11.101, de 2005, que estabelece como delitiva a conduta de praticar qualquer espécie de ato fraudulento, antes ou depois da decretação da falência ou da concessão da recuperação, com o propósito de assegurar vantagem indevida a si próprio ou a terceiro, mesmo que o prejuízo não se consuma.
Assim, são típicas, dentre outras, as condutas de falsear balanço patrimonial, demonstração de resultados ou relatório gerencial de fluxo de caixa para favorecer indevidamente credor ou a si próprio.
A pena prevista é de reclusão de 3 a 6 anos, além de multa, incidindo causa de aumento se a fraude é perpetrada mediante escrituração contábil inexata, inclusive por omissão ou alteração de dados verdadeiros; destruição ou corrupção de dados de sistema informatizado e de documentos de escrituração contábil; ou simulação de capital social.
Se na prática for empregada contabilidade paralela, a majorante incide em percentual de até 1/3, alcançando inclusive profissionais e técnicos que tenham concorrido para a conduta.
No caso de microempresas e de empresas de pequeno porte, desde que a prática não seja habitual, incidirá causa de diminuição, inclusive com substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Quanto à proibição do artigo 172 da Lei nº 11.101, de 2005, a mesma estabelece a tipicidade de qualquer ato de disposição ou oneração patrimonial, assim como de assunção de obrigação, integrando o respectivo tipo objetivo.
A mencionada prática, entretanto, deve ser orientada por duas circunstâncias: a primeira se refere ao elemento subjetivo do agente, retratado na intenção de favorecer determinado credor em detrimento da coletividade; e a segunda, atinente à integração normativa do tipo penal, de maneira que a conduta só assume caráter ilícito na hipótese de ser decretada a falência ou concedida a recuperação, mesmo que o ato de disposição patrimonial lhe seja anterior ou posterior.
Sob este enfoque, incorre na mencionada pena o agente que simular a existência de dívida para falsear a formação do quadro geral de credores, de outorgar indevido privilégio creditício a obrigação para influir na sua classificação no concurso de credores e de alienar patrimônio da empresa em condições prejudiciais à empresa para prejudicar o concurso de credores.
Portanto, sob o enfoque da atividade empresária, a tutela penal é dirigida fundamentalmente àquelas práticas que tenham o objetivo de violar o par conditio crreditorum, favorecendo ou prejudicando determinados credores em detrimento à coletividade concursal.
Já no enfoque das condutas de beneficiamento por fraude na gestão de empresa em crise, a legislação estabelece como criminosas as condutas de se apropriar, de desviar e de ocultar bens, inclusive por interposta pessoa, de propriedade da empresa em recuperação ou de massa falida (artigo 173 da Lei nº 11.101, de 2005), bem como de adquirir, receber e usar bem de massa falida, ou influir para que, de boa-fé, terceiro o faça (artigo 174 da Lei nº 11.101, de 2005).
As mencionadas práticas, tipificadas apenas sob o enfoque doloso, alcançam justamente as práticas de desviar do concurso de credores ou mesmo de assumir a posse de bens de empresa em recuperação ou falida, violando o par conditio creditorum em benefício próprio ou de terceiro, ainda que de boa-fé.
Se inserem na mencionada conduta típica as práticas de ocultação de maquinário e veículo da empresa em crise, além da ocultação de obrigação que assegure ao autor o desvio patrimonial em relação ao concurso de credores, favorecendo determinada pessoa em detrimento da coletividade.
A essência, portanto, das mencionadas figuras típicas remonta à fraude perpetrada para beneficiar terceiros em detrimento da adequada formação do acervo universal da empresa em crise.
Questão profundamente interessante na espécie remonta aos efeitos da sentença penal condenatória em relação aos bens envolvidos na fraude, tendo em vista, de um lado, a previsão do perdimento do produto dos delitos (artigo 91, II, b, do CP), bem como, de outro lado, a previsão de que os bens do acervo, na recuperação, sejam assegurados ao empresário, ao passo que, na falência, o mencionado acervo deve integrar a massa a ser convertida em disponibilidade a ser empregada na quitação do passivo, na medida da extensão do ativo (artigo 140 da Lei nº 11.101, de 2005).
No conflito entre as referidas disposições, haverá de prevalecer a regra que estabelece a realização do ativo para satisfação do passivo, em detrimento do perdimento do produto em prol do Fundo Penitenciário, a ser determinada pelo juízo universal da recuperação judicial ou da falência.
As fraudes perpetradas no cenário da crise empresarial têm, assim, tratamento penal grave, o qual, entretanto, se dirige ao autor da conduta típica, e não à empresa, cuja sobrevida representa valor social protegido constitucionalmente.