Eficácia externa do princípio da preservação da empresa

Taciani A. C.Colnago Cabral¹

O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, reafirmando o importante papel de fonte do Direito inerente à jurisprudência, importantes diretrizes para a correta definição dos contornos de incidência do princípio da preservação da empresa no âmbito da recuperação judicial.

Neste cenário, assume inegável importância precedente cunhado, ainda no final de 2018, pelo Superior Tribunal de Justiça, acompanhando voto do Ministro Luís Felipe Salomão, no julgamento do Agravo interno no Conflito de Competência n.º 149.561, originado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso.

Assim está ementado o julgado:

AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BENS ESSENCIAIS À ATIVIDADE EMPRESARIAL. EXCEPCIONAL SUBMISSÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1 – O credor titular da posição de proprietáriofiduciário ou detentor de reserva de domínio de bens móveis ou imóveisnão se sujeita aos efeitos da recuperação judicial (Lei 11.101/2005, art. 49, § 3o), ressalvados os casos em que os bens gravados por garantia de alienaçãofiduciária cumprem função essencial à atividade produtiva da sociedade recuperanda. Precedentes.
2 – Agravo interno provido.

A despeito da controvérsia ter sido submetida ao Superior Tribunal de Justiça no âmbito de conflito de competência, não há dúvidas de que sua conclusão mais importante remonta ao que se poderia denominar eficácia externa do princípio da preservação da empresa, inerente à recuperação judicial e, em sentido mais amplo, à própria ordem econômica constitucional.

A Lei n.º 11.101, de 2015, dedicou-se expressamente a normatizar o princípio da preservação da empresa, prescrevendo expressamente que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores” (art. 47), de modo a indicar que as medidas de recuperação haverão de observar, tanto na concepção quanto na execução do respectivo plano, a prevalência do valor de preservação do empreendimento.

O escopo da dicção legislativa é evidente no sentido de estabelecer uma diretriz valorativa de condução do processo de recuperação judicial em todas as suas etapas, o que permite que se reconheça, na espécie, uma eficácia interna do princípio da preservação da empresa, assim qualificada justamente por incidir nos próprios limites objetivos e subjetivos do pedido de recuperação.

A recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece, todavia, uma nova faceta do dogma da preservação da empresa, inerente à ordem constitucional pátria, aqui denominada como uma eficácia externa da preservação da empresa, especificamente por dotada do pontual propósito de produzir efeitos para além dos limites do procedimento recuperacional.

Com efeito, a citada conclusão jurisprudencial promove interpretação conjunta dos arts. 47 e 49 da Lei n.º 11.101, de 2005, de maneira que estabelecer que, dada sua magnitude, o princípio da preservação da empresa, conquanto inerente à recuperação judicial na sua faceta interna, haverá de conduzir a interpretação e, sobretudo, a execução de negócios jurídicos que não se submetam ao concurso de credores, o que viabiliza o reconhecimento da chamada eficácia externada preservação da empresa.

Destarte, este novo viés proclamado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto ao princípio da preservação da empresa se dirige fundamentalmente ao disposto no art. 49, §3º, da Lei n.º 11.101, de 2005, que estabelece de forma literal que determinados créditos não se submetem ao concurso de créditos inerente à recuperação.

É esta a prescrição do preceito:

Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos./
(…)
§ 3oTratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4odo art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

É certo que a parte final do dispositivo prescreve expressamente que durante o stayperiodnão será permitida a venda ou retirada do estabelecimento empresarial dos bens de capital essenciais ao funcionamento do empreendimento.

Ainda assim, a deliberação do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgInt no CC n.º 149.561/MT supera, de modo muito relevante, as limitações inerentes à literalidade do art. 49, §3º, da Lei n.º 11.101, de 2005, o que permite o reconhecimento do que se denomina eficácia externa do princípio da preservação da empresa.

Com efeito, a deliberação do Superior Tribunal de Justiça permite o reconhecimento de que, não apenas na condução do processo de recuperação judicial, mas, sobretudo, na tutela jurisdicional dos negócios jurídicos não subordinados ao concurso creditório, ou seja, quanto àqueles expressamente excluídos do processo de recuperação judicial, é fundamental a observância ao dogma da preservação da empresa, de modo a impedir, cogentemente, que o resguardo aos direitos dos credores do citados negócios jurídicos inviabilize a recuperação da empresa.

Neste toar de ideais, o proprietário fiduciário, o arrendador mercantil e o vendedor ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade ou com reserva de domínio, cujos créditos não se submetem ao procedimento recuperacional, têm a prerrogativa de promover a tutela de seus direitos subjetivos à margem da execução do plano de recuperação, mas, ao fazerem-no, deverão observar a vedação de retirada de bens de capital imprescindíveis à atividade empresarial no curso do stayperiod, mas, também, observando diretriz maior, consistente no princípio da preservação da empresa, em sua eficácia externa.

No precedente em exame, o Superior Tribunal de Justiça examinou hipótese em que o processamento da recuperação judicial em trâmite perante o juízo universal foi permeado por pedido de busca e apreensão, em tramitação perante outro juízo, referente a “bens essenciais ao desenvolvimento das atividades da empresa”.

Articulava o credor fiduciária, na espécie, que por haverem sido os mencionados bens objeto de alienação fiduciária, não apenas estariam excluídos do juízo recuperacional, como, principalmente, teriam sido objeto de consolidação da propriedade do credor justamente em virtude do inadimplemento do empresário em recuperação, acrescentando, ainda, que a mencionada consolidação de seu domínio fora reconhecida pelo juízo competente.

Sustentou, ainda, o credor fiduciário, em oposição aos interesses do empresário em recuperação, que a consolidação de sua propriedade fora anterior à decisão de admissão do pedido de recuperação, o qual, por não dispor de eficácia extunc, projetaria apenas efeitos futuros, de modo que não haveria de influir na tutela jurisdicional já concedida no pedido de busca e apreensão.

O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão, reconheceu a premissa de que, no exame do conteúdo fático do litígio, o juízo da recuperação judicial estabeleceu que os bens objeto do pedido de busca e apreensão eram essenciais ao funcionamento do empreendimento, o que haveria de ser sopesado na apreciação do referido crédito pelo Judiciário.

No pormenor, o julgado registrou expressamente que “esta Corte Superior sedimentou posicionamento no sentido de que quaisquer atos judiciais, que possam colocar em risco a eficácia do plano de recuperação, devem ser submetidos ao crivo do juízo universal” (voto do relator), oportunidade em que reconheceu justamente o que se denominaeficácia externa do princípio da preservação da empresa, cuja incidência é consideravelmente maior do que a mera prescrição doart. 49, §3º, da Lei n.º 11.101, de 2005.

Com efeito, a hipótese não é apenas do estabelecimento de determinados negócios jurídicos que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial ou mesmo de prescrever que bens a ele vinculados devem ser mantidos no empreendimento durante o stayperiod.

A prescrição do importante precedente do Superior Tribunal de Justiça é muito maior ao fixar que quaisquer deliberações judiciais externas ao procedimento de recuperação, ou seja, referentes a negócios não submetidos portanto ao plano de recuperação, devem sempre ser submetidas ao juízo universal da recuperação judicial, a quem compete empreender todas as providências e deliberações inerentes à salvaguarda do empreendimento em crise.

Cabe, enquanto fiel e guardião do princípio da preservação da empresa, ao juízo da recuperação deliberar, em último aspecto, quanto a toda e qualquer medida judicial que possa, ainda que por via reflexa, influir na manutenção do empreendimento, fazendo-o sempre com lastro na essencialidade de bens e direitos na reestruturação da empresa.

É justamente neste enfoque que se pode falar da eficácia externa do princípio da preservação da empresa, reconhecido de modo absolutamente relevante pelo precedente do Superior Tribunal de Justiça.

Tanto assim que o voto condutor consigna, ainda, que “o juízo universal é o competente para decidir acerca da essencialidade do bem, ainda que se trate de créditos garantidos por alienação fiduciária, afastando-se, desse modo, a exceção do §3º do art. 49 da Lei n.º 11.101/2005”.

Ao estabelecer as referidas diretrizes, o Superior Tribunal de Justiça concorre, de modo muito eloquente, para a exigência de que se promova uma defesa da preservação da empresa em crise, não apenas no âmbito das recuperações judiciais mas também na apreciação de pretensões que, mesmo não submetidas ao juízo recuperacional, possam de algum modo refletir na reestruturação do empreendimento, estabelecendo assim diretriz cuja autoridade deve ser amplamente observada na jurisprudência nacional.

 

 

 

¹Advogada com atuação específica em recuperações judiciais e falências. Mestranda em Direito Empresarial. Administradora Judicialhabilitada em recuperação judicial e falência pela TMA Brasil. Especialista em Direito Empresarial e Direito do Trabalho. Associada ao IBAJUD.

 

Referências

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