O Superior Tribunal de Justiça decidiu, em agosto de 2018, questão de imensa importância referente à extensão objetiva da recuperação judicial, inclusive para fins de definição da competência do juízo universal e para aferição do stayperiod, relativamente ao patrimônio pessoal de empresário individual submetido ao procedimento de recuperação da empresa.
A questão, face as prescrições regimentais aplicáveis, foi submetida a julgamento do Ministro Marco Aurélio Bellizze, que proferiu decisão monocrática assim ementada:
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. EMPRESÁRIO INDIVIDUAL EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MEDIDAS DE CONSTRIÇÃO JUDICIAL NO BOJO DE EXECUÇÃO EM QUE FIGURA COMO EXECUTADO. PATRIMÔNIO DA PESSOA FÍSICA OU NATURAL QUE SE CONFUNDE COM O DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL, RESPONDENDO PELAS OBRIGAÇÕES CIVIS E COMERCIAIS ASSUMIDAS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO EM QUE SE PROCESSA A RECUPERAÇÃO JUDICIAL.
(STJ, CC 158.973/MT, Min. Marco Aurélio Bellizze, 6ª Turma, DJe 09/05/2016)
A decisão mencionada foi proferida no julgamento do Conflito de Competência n. 158.973-MT.
O litígio envolve indefinição acerca do juízo competente para apreciar medidas de constrição do patrimônio individual do empresário individual que se encontra, perante outro juízo, no especial regime de recuperação judicial, envolvendo, na espécie, os juízos da 1ª Vara Cível de Campo Verde-MT e da 38ª Vara Cível de São Paulo-SP.
Quanto à relação jurídica de direito material controvertida, o exame do precedente se refere a empresários individuais que ajuizaram pedidos de recuperação judicial, visando superar situação de crise econômico-financeira do empreendimento, tendo, na espécie sido estendidos os efeitos da recuperação para seus patrimônios individuais, de modo a não se restringir ao acervo patrimonial vinculado à atividade empresária, tendo em vista a adoção da forma de empresa individual.
À margem da admissão e do processamento da recuperação judicial, outro juízo, vale dizer, diferente daquele que processa o pedido recuperacional, determinou a constrição e a realização de hasta de bens particulares dos empresários individuais, no bojo de execução individual de título de crédito oponível à pessoa física do empresário.
Convém sublinhar que a constrição patrimonial recaiu quanto a bens pessoais, não vinculados à atividade empresarial e, sobretudo, atrelados por garantia real à obrigação individual em execução.
Esta foi a questão submetida ao Superior Tribunal de Justiça, referindo-se, destarte, aos limites objetivos do processamento da recuperação judicial, quanto à competência universal do juízo recuperacional e quanto ao stayperiod, especificamente frente os bens particulares do empresário indivual.
Ao decidir a questão, pontuou a Corte Superior, como premissa, que o stayperiod estabelecido no art. 6º da Lei n. 11.101, de 2005, sobretudo quando conjugado com o estabelecimento do juízo universal da recuperação judicial, tem especificamente o propósito de assegurar ao empresário um cenário favorável à ampla reorganização de suas atividades, notadamente econômico-financeiras, concorrendo outrossim para a salvaguarda do empreendimento e de sua função social.
Por corolário da referida premissa, assumiria inegável caráter contraditório permitir que, especificamente quanto ao empresário individual, o prazo de suspensão dos processos e a universalidade do juízo, inerentes à reorganização das atividades econômico-financeiras da empresa, fossem afastados quanto aos bens particulares da pessoa natural.
Pois bem.
A citada conclusão jurisprudencial deita raízes na modificação normativa decorrente do Código Civil de 2002 que, alternando cenário anterior, abandonou a teoria dos atos de comércio para fixar o objeto do Direito Empresarial na noção de empresa, em aplicação da teoria da empresa.
A teoria dos atos de comércio foi inaugurada a partir do Código Civil francês de 1807 que, a despeito de sua promulgação ainda em 1804 com a denominação Code Civil dês Français, foi rebatizado como CodeNapoléon em 1807 com a assunção do poder por Bonaparte.
Sua essência remontava fundamentalmente à aplicação de regime normativo próprio dos empresários, com exclusão dos diplomas de regência das relações civis, àqueles que praticavam habitualmente atos próprios da vida comercial.
A evolução da sociedade contemporânea revelou a insuficiência do referido contexto para regulamentação do tema, notadamente frente os avanços constantes dos atos e práticas comerciais, o que atestou a absoluta inviabilidade de umadefinição prévia, minimamente eficiente, do conjunto de atos inerentes à atividade empresarial que seriam suficientes à sua submissão ao regulamento próprio, excludentes da legislação civil.
É singela a percepção da absoluta inviabilidade de uma catalogação antecipada, no mundo contemporâneo, dos atos característicos do exercício do comércio.
No contexto da insuficiência normativa da teoria dos atos do comércio, surgiu, a partir do Código Civil italiano de 1942, coordenado por Alberto Asquini e FilippoVassalli, a teoria da empresa, segundo a qual a aplicação de ordenamento próprio da atividade comercial é dirigido àquele que exerce atividade empresarial de modo organizado, deixando de ter por parâmetro atos específicos próprios da prática do empreendimento.
Este o cenário que permeou a superação de um Direito Comercial pelo Direito Empresarial.
Foi este especificamente o lastro teórico adotado pelo Código Civil de 2002, que reservou a legislação especial, excludente do regime geral do Direito Civil e inerente ao Direito Empresarial, ao empresário.
Destarte, muito mais do que promover nova denominação da disciplina, a entrada em vigor do Código Civil de 2002 modificou completamente a regulamentação da atividade econômica no Brasil, abandonando uma base de atuação lastreada na catalogação de atos de comércio, que então servia de seu parâmetro de incidência, para experimentar uma definição de sua aplicação a partir do exercício da atividade da empresa.
Para além disso, o Código Civil optou por não vincular a aplicação do Direito Empresarial à noção de empresa, enquanto atividade organizada destinada à dispensação de bens e serviços ao mercado de consumo, mas sim à figura do empresário, na condição de sujeito de direitos incumbido da prática empresarial.
Assim, a base de incidência do Direito Empresarial deixa de ser a prática de atos de comércio para se valer da figura do empresário, enquanto titular do exercício do empreendimento.
A consequência dessa opção legislativa é a percepção de que, quando exerce atividade empresarial em nome próprio, o empresário não assume personalidade jurídica dupla, cumulando uma aptidão para direitos e deveres enquanto pessoa natural e outra na condição de empresário.
Tal opção legislativa, vale frisar, não é, como não poderia deixar de ser, modificada pela opção regulamentar de emprestar ao empresário individual registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ e de lhe assegurar regime tributário diferenciado.
As referidas opções são próprias da política econômica por cada ordenamento, a qual, obviamente, não modifica o regime legal aplicável ao patrimônio do empresário individual.
Logo, o empresário individual é pessoa natural que, em seu próprio nome e sem personalidade jurídica diferenciada, exerce atividade empresarial com comprometimento de sua personalidade própria, em seus direitos e deveres.
A mencionada posição vige há muito na doutrina nacional, como se percebe da produção de Rubens Requião, que advertia ainda na vigência do Código Civil de 1916, que “o comerciante singular (…) é a própria pessoa física ou natural, respondendo os seus bens pelas obrigações que assumiu, quer sejam civis, quer comerciais” (REQUIÃO, 1995, p. 68).
A mesma percepção vigena jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que conclui“no sentido de que a empresa individual é mera ficção jurídica, criada para habilitar a pessoa natural a praticar atos de comércio, com vantagens do ponto de vista fiscal. Assim, o patrimônio de uma empresa individual se confunde com o de seu sócio”(STJ, REsp 487.995/AP, Min.ª Nancy Andrighi, DJ 22/05/2006).
Esta é a pedra de toque do precedente.
Tratando-se de empresário individual submetido ao processo de recuperação judicial, não apenas todo o acervo patrimonial aplicável ao empreendimento, como também seu próprio patrimônio individual, vinculado à sua personalidade jurídica natural e mesmo que desvinculado de seu viés empresário, haverá de estar resguardado pelo stayperiod e pela universalidade do juízo inerentes ao empreendimento em situação de crise.
Não observada tal amplitude quanto aos efeitos do processamento da recuperação judicial, no tocante ao empresário individual, ter-se-á a absoluta ineficácia do instrumento jurídico destinado ao restabelecimento da empresa em crise, mesmo em relação a bens individuais dados em garantia real em de contratos firmados pelo empresário.
É especificamente neste aspecto que se exalta a importância do precedente do Superior Tribunal de Justiça, enquanto parâmetro delimitador dos efeitos da recuperação judicial quanto ao empresário individual, ratificadores do stayperiod e do juízo universal como facetas de resguardo da função social da empresa.
Referências
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